domingo, 1 de novembro de 2009

O Jeito da Comida Goiana por Gláucia Tahis da Silva Campos Péclat

Pensar em comida e alimento e como o são o constructor da cultura, tem sido uma antiga preocupação da Antropologia e mais recentemente da História Cultural. Desde o século XIX, a Antropologia começou a desenvolver uma etnografia sistemática dos hábitos alimentares e a buscar interpretá-los culturalmente. Quanto aos historiadores culturais estes, estão cada vez mais interessados em saber como a comida nutre as sociedades, bem como alimenta identidades e define grupos. O estudo da alimentação é um vasto domínio multidisciplinar para o qual as demais ciências como a Sociologia, Arqueologia, Biologia, Medicina e a Economia têm prestado grande parcela de contribuição ao tema.

Nada mais curioso a um estranho como a maneira que se come: o quê, onde, como e com que freqüência comemos, e como nos sentimos em relação à comida. Isto atrai sua atenção rapidamente, porque a comida e o alimento ajudam a classificar ações morais no nosso mundo (DaMatta, 1986). Comer é uma atividade humana central não só por sua freqüência, constante e necessária, mas também porque cedo se torna a esfera onde se permite alguma escolha (Fernandez-Armesto, 2004). Além disso, existe um bom motivo para que a alimentação seja considerada tema essencial; é a coisa mais importante para a maioria das pessoas, a maior parte do tempo. E nenhum outro aspecto do nosso comportamento, à exceção do sexo, é tão sobrecarregado de idéias como a alimentação, conforme sublinhou Carneiro (2003) em ‘Comida e Sociedade; uma história da alimentação’.



Como representação, ela se apresenta como um momento de convivialidade, manifesta-se sempre na comida compartida entre parentes e amigos. Ela pode ainda, expressar a condicionante de sociabilidade, pois, é capaz de reunir pessoas – mesmo as estranhas, para um momento de socialização que de uma certa maneira, pode se configurar como uma ocasião especial. Já o alimento, tem, além da satisfação e da manutenção do corpo, o sentido universal e geral e, também um ato individual. “Algo que diz respeito a todos os seres humanos: amigos ou inimigos, gente, de perto ou de longe, da rua ou da casa” (DaMatta, 1986: 55).

A comida pensada a partir de uma oposição em relação ao alimento conserva certas propriedades a que confere a noção de comportamento. E ainda, conserva certos elementos tão próximos daquilo que poderíamos chamar de desejo se estabelecer certas diferenças. Assim, um simples ato de cozer ganha a dimensão de comida quando “ritualizado”. Lévi-Strauss (2004) ao escrever ‘O Cru e o Cozido’ nos chama atenção ao considerar que o cru como parte da natureza ganha nova dimensão ao ser cozido e se transforma em cultura. O cozido entendido por ação cultural com ritmação lenta que marca longos processos de preparação e confecção de alimentos se configura em comida. No entanto, todo esse processo de transição natureza-cultura deve ser entendido a partir da noção de classificação e da escolha dos alimentos.

O ato de comer pode organizar a sociedade. “Em torno de refeições em conjunto e em horários prévios para comer” (Fernandez-Armesto, 2004: 24), ele ordena o mundo em que vivemos. “A comida é um meio pelo qual as pessoas podem fazer afirmações sobre si próprias” (Woodward, 2000: 43). Comida não pode ser simplesmente entendida como “boa para comer”, mas, como analisou Lévi Strauss, a comida é “boa para pensar”. Assim, comer dá existência social: “como, logo existo”.

Comida é mais que sustento (Fernandez-Armesto, 2004). Sua produção, distribuição preparação e consumo geram ritos e magia. A comida seduz, produz magia, sentimento de prazer. Porém, quero enfatizar nesse texto, que comida é também, um memorial. Um aprazível memorial. Comer certos pratos que carregam a identidade de um povo é também, “comer” parte de uma memória. Memória esta, que elege ou delega a certos pratos a importância de ser o carro chefe da culinária local, e, portanto, da sua identidade.

Em Goiás, pode se afirmar, o empadão é um memorial (Péclat, 2003). Um memorial que atribui identidade de comportamento. Nesse caso, o empadão goiano é um memorial que define como se é. O “nós” – os goianos, nos distinguimos dos “outros”, pois, o empadão está para Goiás como o pão de queijo está para Minas (Péclat, 2003). E o pequi? Para os goianos, o que dele importa é que representa uma identidade, embora, certos goianos detestem pequi.

Em Goiás, devido a importância significativa que a comida tem enquanto definidora da identidade regional e local, assim como em outras partes do Brasil, a cozinha é grande porque é importante (Péclat, 2003). E é importante porque agrega operações rituais, habitus, atos memoriais. Nas palavras de Suely Molina:

"Na cozinha goiana, se produz e se consome pratos folclóricos como o arroz-com-pequi, a maria-isabel, exatamente por pertencerem ao receituário do povo. “E o jeito do cozinhar folclórico é aquele, bem pessoal, em que a cozinheira não vai atrás dos livros de receitas nem balança para pesar os ingredientes; é um prato raso ou fundo disso ou daquilo. Não se usa na cozinha folclórica, ou do povo simples, o grama, o quilo.” (Ortencio, 2004: 136)."



Em Goiás, os hábitos alimentares devem ser analisados a partir da ótica cultural de cada grupo. O que está em jogo é a diferença entre alimento e comida. A comida – ela “fala” de algo mais que nutrientes. “Fala” de economia, ideologia, política, “fala” de família e aspectos ecológicos.

Afinal, o que pode ser entendido por comida em Goiás? Se pensarmos em categorias simbólicas; comida aqui seria refeição de caráter social, ou seja, em grupo. E há diferenças entre o comer cotidiano e o comer cerimonial, mesmo que ambos sejam ritualizados (Woortmann, 2004).



A galinhada, como a pamonhada, em Goiás, já não é mais apenas um prato, uma iguaria. Na verdade, virou uma reunião social. Ritualizados, esses pratos expressam a integração social. Aos domingos, pela madrugada ou ao entardecer, a galinhada e a pamonhada, são comidas – comidas típicas, que representam a comensalidade. O mesmo se aplica ao empadão goiano e ao arroz com pequi. Expressados pelo sentido de goianidade, cada um desses pratos tem em si, um valor totêmico, que na acepção de Lévi-Strauss (2003: 31) significa, [o] da “minha parentela” que exprime o parentesco, a “pertença” ao mesmo grupo familiar.


_______________________________________
Gláucia Tahis da Silva Campos Péclat é mestre em Patrimônio Cultural pelo IGPA-UCG, pesquisadora associada do Núcleo de Antropologia da UEG e professora do Departamento de História da Faculdade de Educação Ciências Humanas de Anicuns(GO)

Um comentário:

  1. Boa noite!!!
    Eu pasei por aqui para parabenizar pelo blog e convida-la a visitar o meu e se qiserb pode me acompanhar ou trocar link/banner.
    No mais feliz 2010.

    ResponderExcluir