segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Viver à mesa

As noções de hibridismo referem-se ao encontro de culturas diferentes, que se juntam e geram novas culturas, modificadas, hibridizadas. O termo hibridismo veio da Biologia, mas é usado por abarcar melhor as múltiplas "misturas" que se dão nas sociedades e não podem ser classificadas por conceitos como sincretismo, que se torna um termo muito limitado.


A ideia de uma cultura como algo único, impassível de mudanças e encontro com outras culturas é equivocada. As pessoas, as sociedades, munidas cada uma com cargas culturais diversas vivem em constante contato. É irreal pensar que existe uma cultura pura, que não se mistura, que não se hibrida. Nada escapa a esses processos. E não é diferente com a comida.


As cozinhas locais, regionais, nacionais e internacionais são produtos das hibridizações culturais, fazendo com que as culinárias revelem vestígios das trocas culturais. O alimento constitui uma categoria histórica, pois os padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas alimentares têm referências na própria dinâmica social. Os alimentos não são somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social, pois constitui atitudes, ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações. Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro. A historicidade da sensibilidade gastronômica explica e é explicada pelas manifestações culturais e sociais, como espelho de uma época e que marcaram uma época. Nesse sentido, o que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come, como se come e com quem se come.


Tendo em vista estas questões temporais podemos nos perguntar:De que forma a globalização tem afetado a maneira que nós comemos e o que comemos? Como tradicionais rituais alimentares permanecem, sucumbem ou se adaptam às transformações do cotidiano? Na culinária goiana vemos exemplos disso nos inúmeros restaurantes que se preocupam em mostrar uma cozinha tipicamente regional ou mesmo adaptada a outras cozinhas nacionais e internacionais, como é o caso do Haconi.


Porém essas "novas" formas de comer nos remetem a reflexões acerca do sistema capitalista em que vivemos. Será que as classes de menor poder aquisitivo têm acesso estes pratos servidos em restaurantes que se situam, na sua maioria, em bairros nobres da cidade? Ou adaptam sua alimentação às suas condições financeiras? De que forma?


Pensando nisso acho pertinente a ideia da relativização. Relativização no sentido de que para a família que come, quase que ritualmente uma galinhada, ou se reúne no domingo para uma pamonhada, os pratos feitos com orçamento baixo podem adquirir o mesmo sentido. Talvez mais forte. Isso porque para o pai de família que leva a mulher e os filhos para um almoço à la carte num desses restaurantes nobres, ou tem a comida preparada pela empregada, sem interesse neste importante ritual de preparo, talvez o ato de comer tenha se tornado trivial, conscientemente.


Mas mesmo com essas diferenças entendo que a comida adquire para todos um espaço, um momento de convivência social, mesmo que para alguns esse papel seja mais marcante. Para Jean-François Revel a cozinha é arte desde que se considere a representação dos sabores. A cozinha, para o autor, é o universo onde convivem intuição, sensibilidade, imaginação e criatividade, permitindo múltiplas dimensões e integrações. Também são de grande importância as mentalidades, os ritos, o valor das mensagens que se trocam quando se está diante da mesa e da comida, os valores éticos e religiosos, a transmissão inter e intra-geração, a psicologia individual e coletiva, e outros tantos fatores. Comida é vivência, é pensamento, é troca de experiências.

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